flor da cana do brejo

domingo, 18 de setembro de 2011


São João da Barra
Foto: Teócrito Abritta

                                                         
                                                           O ANEL DE PÉROLA
                                                                                                           Para Pedro, meu filho

Minh’alma é um livro lindo,encadernado,
/ Co’as as folhas em cetim

Eu ia feliz pela Estrada de Ferro Mauá. Um pé num dormente, um salto, dois pés em cada trilho, os braços abertos para manter o equilíbrio. As britas entrando nas sandálias, machucando os pés, cobrindo de terra e eu nem sentindo. Lá ia eu cantando, caindo, equilibrando, correndo até onde podia na minha aventura. Depois deitava na linha do trem e ficava olhando o céu. Nada de borboletas azuis. Só imenso capinzal e as extensas fazendas de café. Falava alto recitando os versos Livre filho das montanhas, Eu ia bem satisfeito, [...]Atrás das asas ligeiras, Das borboletas azuis”. Meus oitos anos ainda estavam por chegar. Precisava decorar o poema inteiro e recitá-lo sem errar nenhum verso. Desejava ganhar o anel prometido no dia do meu aniversário. Olhava minhas mãos pequenas, juntava as palmas, imitava o voo das borboletas.
Nunca entendi muito bem certos costumes de certas famílias para com algumas datas tornadas especiais e bastante significativas. Na minha família, aos oito anos, toda menina recebia um anel de ouro com uma pérola. Para tanto deveria recitar com graciosidade o poema “Os meus oito anos” de Casimiro de Abreu. Contam que minha tataravó Joaquina, vó Quinquina, como a chamavam, possuía um único exemplar raro do livro Primaveras e guardado estava no seu pequeno baú até que alguém, merecedor de tal relíquia, o herdasse um dia. Essa história, assim como o baú , ia passando de geração em geração, sem que ninguém o abrisse.
Sentia-me cansada, os lagartos já faziam barulho no mato e, antes que entardecesse, tratei de limpar a sujeira dos pés, fechar a fivela da sandália e tomar de volta a origem do meu destino. Assim fui. Um passo no dormente, dois passos nos trilhos, uma passo pra cá, um passo pra lá, pulando um passo, um passo, um passo, passo, passo, passo. Imitava o barulho do trem. Bom ser o maquinista, o cobrador, o passageiro assobiando pela ferrovia. Quando vi já tinha saído dos trilhos e andava pela estrada de terra. Lá longe dava para avistar o trapiche e o Rio São João. Gostoso molhar os pés nas águas e lavar o rosto. Do alto a igreja de Barra de São João me espiava. Caminhei até lá, sentei nos degraus pensando em quantas Ave-Marias teria que rezar para tudo guardar O mar é - lago sereno, O céu - um manto azulado/ O mundo - um sonho dourado, A vida - um hino d’amor! Subi os degraus e encontrei a porta fechada. Contornei a igreja e, lá nos fundos, o cemitério. Debrucei-me na mureta e fiquei olhando o rio, os barcos dos pescadores, as crianças brincando na areia. Do outro lado dava para ver o mar. Voltei a cabeça porque ouvi alguém falar Viste o lírio da campina?[...]Nunca ouviste a voz da flauta,[..]Não viste a rola sem ninho [...]Não viste a barca perdida.Quem está aí? Só o sol resplandecia sobre as águas. Caminhei até o final e então parei diante de um túmulo com quatro pombas. Naquele momento entendi tudo. Puxei o vestido para proteger os joelhos, uni as mãos e ali abaixada e quieta, rezei baixinho: Casimiro, me ajuda a decorar os versos e ganhar meu anelzinho.Prometo trazer um pãozinho para cada pombinha. Fiz o sinal da cruz e segui para casa.
Ali, nas ruas que margeiam o rio, Barra de São João ainda possui casas com janelas que dão para a calçada. Árvores frondosas, bananeiras, laranjais, tardes ternas Onde a brisa em seus rumores/ Murmura: não tem rival!
Ainda demorou dias para chegar o meu aniversário, mas chegou. Na mesa uma tolha branca e um bolo redondo com borboletas azuis. Colocaram-me no centro da sala, as visitas me olhando,vestido de festa, sapato de laço e o coração querendo sair pela boca junto com todos os versos. Não tinha como escapar do que, anos mais tarde, chamaria de o meu ritual de passagem. Respirei fundo e recitei com toda a graciosidade que consegui. Todos aplaudiram rindo. Estendi a mão e ganhei o meu anel. Saí correndo para o meu quarto.
A cama era alta, antiga, combinando com a cômoda. Sobre esta estava o baú da vó Quinquina, uma caixa forrada com tecido e envolvida com um laço de fita já amarelado pelo tempo. Ao lado a foto do neto, meu avô Joaquim. A família o tomara por um boêmio incurável. Poeta, vivia nas noites cariocas. A filha de oito meses dormiu para sempre nos braços de minha avó, no meio de uma cantiga de ninar. Vô Joaquim transformou seus versos em prantos e adoeceu logo em seguida. A tuberculose o levou aos vinte e seis anos deixando de herança dois órfãos e uma casa toda manchada de produtos que a saúde pública tratou de colocar.
Vesti a minha roupa de dormir, levantei o travesseiro, encostei a cabeça e meus olhos ficaram espiando, quase cobiçando aquele segredo. Esperei a casa adormecer e o silêncio das estrelas iluminar minha curiosidade. Na ponta dos pés caminhei até a cômoda, peguei o baú e o coloquei sobre a cama junto às minhas pernas cruzadas. Com todo o cuidado desatei o laço. Lá estava o exemplar de Primaveras, um anel de pérola e um camafeu com o rosto de um jovem rapaz de cabelos pretos, sem barba, com um pequeno bigode, quase um buço adolescente. Bonito, achei. Junto a isto havia um papel enrolado com uma fita fina. Puxei. Facilmente soltou-se. Com uma caligrafia impecável, palavras carinhosas como meu anjinho ou minha querida um segredo que nunca seria desvendado. Lá estava um poema inteiro dirigido (A uma menina). Surpresa, li alguns versos “Simpatia - é o sentimento/ Que nasce num só momento,/Sincero no coração [...] São duas almas bem gêmeas/ Que riem no mesmo riso [...] Duas liras semelhantes, /Ou dois poemas iguais [...]Simpatia - meu anjinho, /É o canto do passarinho,/É o doce aroma da flor; [...] - Simpatia - é - quase amor!
Ninguém poderia saber quem era a menina do poema. Aquele jardim secreto, aquele amor, teriam que ser guardados. Fechei tudo com um zelo imenso de quem carrega o perfume das flores. Voltei o baú para o lugar. Deitei na cama, me cobri com o lençol. Minha cabeça e minhas mãos sobre o travesseiro. Olhava o anel. Acariciava a pérola como uma ostra a guardar o segredo.



Meu coração dói como o sino da igreja
cujas badaladas silenciaram há anos
e já não chama os fiéis
para missas ou terços.

Meu coração é uma conta de lágrimas
a desmanchar-se nos meus dedos
entre uma ave-maria e um pai nosso
rezados em silencio.

Meu coração triste já não bate feliz
portas que se abrem para um abraço
crianças rindo no parque
asas coloridas no jardim
Santana dos Montes - MG
Foto: Teócrito Abritta

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Flores do quintal de casa
Meu cansaço já não me permite algumas coisas,
como dormir na hora certa e ficar até mais tarde na cama.
Cansada, já não tenho horas e a tarde me acolhe
como a ave que volta para o ninho ao entardecer.
O sono é incontrolável quando o sol já se esconde,
tal qual eu, debaixo das cobertas, a esperar.
O cheiro do café me chama e levanto com as estrelas
a anuciarem a luz nesse fim de tarde a espreguiçar-se.
Se o cheiro de terra molhada vem com a brisa,
sei que a chuva está por chegar e aguar as plantas.
A noite terá o cantar dos pingos nas folhas
e os pequenos bichos do quintal correrão protegidos.
A vida ali cresce, procria e, às vezes nem percebo,
somente as flores desviam o meu olhar.
As palavras embaralhadas na chuva da noite,
molharam o caderno, o risco do lápis,
restando um grafite como paisagem.

A mão passou a desenhar o verso,
os dedos sobre o papel,
riscando borrões, detalhes sombreados.

A luz dos desenhos refletia a borrasca
nas vidraças das janelas do quarto:
lágrimas derramadas das nuvens.

Meus olhos espiam o céu
esperando clarear o dia:
manhã azul me espia.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Lúcia e Pedro
Como arrancar de dentro de mim
A palavra certa
No meio das outras que vociferam
Eu quero a palavra doce
A palavra com gosto de tachos de mel
A colher de pau mexendo a mão lenta no fogão

Minha alma tem raizes profundas
Alimenta-se da seiva da memoria
Guardei tudo
Das tantas vidas
Meu cansaço se atira debaixo das cobertas

Durmo, durmo, mesmo sem sono
Preciso passear de alguma forma
Uma cama e dois cachorros
E meu pensamento parte
A pipa azul num céu estonteante                        

Quero ser livre, liberta
A palavra me aprisiona
Como ter um jeito certo
Para definir
O incerto

domingo, 4 de setembro de 2011


Estranho, depois do temporal, a corrida desenfreada pela rua,
o guarda-chuva empinado pelo vento, eu encharcada por dentro.
Agora, essa brisa noturna com cheiro de mato e terra úmida,
flores por abrir ao amanhecer, mudanças por saber.
Depois não sei o que farei diante da vida a multiplicar-se em
folhas, minhocas, caprichos e os pés com bolhas de sapato novo.
Tudo isso por você.
Meu amor só existe porque vivo assim: a procurá-lo
em cada gesto meu, no pentear os cabelos, escolher o vestido,
perfumar-me e rir para o espelho, onde seus olhos espiam os meus.