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A ERA DE NARCISO
Diante do espelho a mulher puxa cada fio delicado das
sobrancelhas. Um a um delineia a curvatura da expressão: lápis, rímel, luzes
nas pálpebras. A boca assume um ar delicado de faces ruborizadas. As ondas
suaves ondulam para além do gramado. Linda! Pensa consigo mesma. Estica o
braço, faz um beicinho sensual e clica: a própria imagem é refletida.
A exposição durará apenas alguns segundos. Curtidas,
ameis, carinhas sorridentes. Ri feliz. Todo espelho agora é mágico a dizer:
ninguém é mais bonita que você! As páginas correm rapidamente, diferentes das
de um livro.
Não há tempo para deter-se a detalhes. Apreciar toda a produção,
também não. Algo novo. Algo novo. Repete quase enlouquecida pela paixão. Coloca
o celular ao lado.
Diante do espelho o homem repara nas rugas de anos: sulcos
fundos da vida desregrada. Besunta o rosto de espuma e passa o barbeador
descartável. Sim: outros tempos. A navalha do bom barbeiro custa caro para o
bolso. A boca esboça um sorriso malicioso. As ondas ondulam suaves para além do
gramado. Viril! Pensa consigo mesmo. Estica o braço, ri sem mostrar os dentes e
clica: a própria imagem é refletida.
A exposição durará várias fotos postadas imbox. Curtidas,
ameis, carinhas sorridentes. Ri sarcástico! Todas se encantarão com a mágica: Bom dia! Lindo! Gato!
Não há tempo para deter-se a detalhes. Precisa satisfazer
a própria vaidade.Convencer a todas da mentira que inventou para si mesmo e
acredita. Precisa de uma mulher qualquer, um homem qualquer, qualquer coisa que
afogue o fracasso de anos. Engana a todos e se diverte. Você não perguntou: a
resposta está na ponta da língua. Coloca o celular ao lado.
As águas chamam: vem, vem, vem. Como resistir ao apelo
insaciável dos tempos de solidão:relações afetivas descartáveis, amigos
virtuais descartáveis, grupos descartáveis, abraços descartáveis? Nem os rios e
os mares suportam mais tanto lixo.
Pela manhã, a toalha xadrez estará sobre a mesa. Café,
leite, pão quente, manteiga, queijo, salame, bolo de maçãs com castanhas. O
real ali pouco interessa. Tão pouco as mãos delicadas a servir carinhosamente o
desjejum. Mães, esposas, avós: espécies em extinção.
Ao anoitecer, o homem chegará cansado do trabalho. A
toalha bordada sobre a mesa. O jantar servido quente. O salário distribuído
para as despesas, guardado com cuidado. O real ali pouco interessa. Tão pouco
as mãos firmes a entrelaçar carinhosamente o perfume no lençol de linho. Pais,
maridos, avôs: espécies em extinção.
O dedo nervoso esfrega o celular freneticamente. O
aparelho tem um orgasmo múltiplo. O esperma, tal qual uma espuma tóxica,polui
as nascentes.Do outro lado a mulher passa o batom na vagina.
(Lúcia Gomes - fragmento de texto)
Foto: Lúcia Gomes Bairro: Cidade Nova |
Muito bom. Gosto como escreve e como retrata a vida real. Agora estou no PC e é Windows, assim como o o Blog onde vc escreve. Em outros sistemas como o IOS da Apple, fica dificil porque são outros sistemas que em príncipio até rivais, dificultando os comentários. Como vc sabe, eu uso muito mais outro sistema !
ResponderExcluirGrata pelo comentário, João António. Entendo a diferença de sistemas, mas é só uma questão de paciência.
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