flor da cana do brejo

quarta-feira, 17 de julho de 2019

BEM VINDOS AO FACEBOOK - A ERA DE NARCISO


                                    

                                           BEM VINDOS AO FACEBOOK                                            

                                                    A ERA DE NARCISO 
            
       


         Diante do espelho a mulher puxa cada fio delicado das sobrancelhas. Um a um delineia a curvatura da expressão: lápis, rímel, luzes nas pálpebras. A boca assume um ar delicado de faces ruborizadas. As ondas suaves ondulam para além do gramado. Linda! Pensa consigo mesma. Estica o braço, faz um beicinho sensual e clica: a própria imagem é refletida.
            A exposição durará apenas alguns segundos. Curtidas, ameis, carinhas sorridentes. Ri feliz. Todo espelho agora é mágico a dizer: ninguém é mais bonita que você! As páginas correm rapidamente, diferentes das de um livro. 
          Não há tempo para deter-se a detalhes. Apreciar toda a produção, também não. Algo novo. Algo novo. Repete quase enlouquecida pela paixão. Coloca o celular ao lado.
       Diante do espelho o homem repara nas rugas de anos: sulcos fundos da vida desregrada. Besunta o rosto de espuma e passa o barbeador descartável. Sim: outros tempos. A navalha do bom barbeiro custa caro para o bolso. A boca esboça um sorriso malicioso. As ondas ondulam suaves para além do gramado. Viril! Pensa consigo mesmo. Estica o braço, ri sem mostrar os dentes e clica: a própria imagem é refletida.
            A exposição durará várias fotos postadas imbox. Curtidas, ameis, carinhas sorridentes. Ri sarcástico! Todas se encantarão com a mágica: Bom dia! Lindo! Gato! 
       Não há tempo para deter-se a detalhes. Precisa satisfazer a própria vaidade.Convencer a todas da mentira que inventou para si mesmo e acredita. Precisa de uma mulher qualquer, um homem qualquer, qualquer coisa que afogue o fracasso de anos. Engana a todos e se diverte. Você não perguntou: a resposta está na ponta da língua. Coloca o celular ao lado.
            As águas chamam: vem, vem, vem. Como resistir ao apelo insaciável dos tempos de solidão:relações afetivas descartáveis, amigos virtuais descartáveis, grupos descartáveis, abraços descartáveis? Nem os rios e os mares suportam mais tanto lixo.
            Pela manhã, a toalha xadrez estará sobre a mesa. Café, leite, pão quente, manteiga, queijo, salame, bolo de maçãs com castanhas. O real ali pouco interessa. Tão pouco as mãos delicadas a servir carinhosamente o desjejum. Mães, esposas, avós: espécies em extinção.
            Ao anoitecer, o homem chegará cansado do trabalho. A toalha bordada sobre a mesa. O jantar servido quente. O salário distribuído para as despesas, guardado com cuidado. O real ali pouco interessa. Tão pouco as mãos firmes a entrelaçar carinhosamente o perfume no lençol de linho. Pais, maridos, avôs: espécies em extinção.
            O dedo nervoso esfrega o celular freneticamente. O aparelho tem um orgasmo múltiplo. O esperma, tal qual uma espuma tóxica,polui as nascentes.Do outro lado a mulher passa o batom na vagina.

      
                   (Lúcia Gomes - fragmento de texto)


Foto: Lúcia Gomes
Bairro: Cidade Nova



2 comentários:

  1. Muito bom. Gosto como escreve e como retrata a vida real. Agora estou no PC e é Windows, assim como o o Blog onde vc escreve. Em outros sistemas como o IOS da Apple, fica dificil porque são outros sistemas que em príncipio até rivais, dificultando os comentários. Como vc sabe, eu uso muito mais outro sistema !

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    1. Grata pelo comentário, João António. Entendo a diferença de sistemas, mas é só uma questão de paciência.

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