Palavras Cruzadas
Vamos
escrever a nossa historia, enquanto ainda vive na memoria?
Ah,
não me falem de rimas pobres. Essa não é a questão, de novo não.
Li
o e-mail a indagar-me o porquê de tal proposta. Escrever dizem ser um ato
solitario. O mundo está cheio de mentiras. Meus personagens me atazanam as
ideias e falam mais do que eu.
Quatro
mãos juntas ao piano a dedilhar uma canção nova para cantarmos nos momentos de
silencio e quebrarmos a rotina. Minhas duas mãos poderão tocar as suas. É quase
inevitavel. Nesse momento nossas palavras entrelaçadas soariam a mesma nota: um
sol qualquer. Nossos risos esbarrariam no calor dos labios. Possivelmente todos
os teclados tocariam ao mesmo tempo a nossa música.
Posso até ouvir meu coração acelerado,você de maestro
a reger. Não sei como realizar tal proposta separados pela tecnologia a
furtar-me o que mais preciso: o roçar dos seus braços nos meus. Também esse
cheiro que não me pertence e muda o ar do quarto. Ou as mãos, uma sobre a
outra,os dedos apertados a segurar para que não partam. Bom esse aconchego. A
certeza, mesmo que provisoria, da sua proteção. O calor que sobe pelo braço e
arrepia o pescoço. Suspendo o ombro, reviro as costas, sei que você vai afastar
os meus cabelos castanhos e longos a divertir-se com o meu riso: Assim não
vale! Você já saberia a resposta e riria do lugar comum. O comum, às
vezes, é tão melhor.
Bom
e gostoso. Coloquei o capuccino fumegante na caneca de cerâmica. As mãos quentinhas
desacostumadas a esse inverno. Encostei-me na porta da cozinha a olhar as
maitacas empoleiradas nas telhas. Um bando inteiro. A empregada da vizinha
gritava: “Milagre! Milagre! Só pode ser um sinal de Deus.” Lindas de fato. O
seu cantar é atraente: todas ao mesmo tempo num delirio humano de deixa eu
terminar de falar. Procurava aprender com elas.Um trinado em conjunto.
Arruaça logo de manhã. Eu o empurrava para lá dizendo Pára, agora não, deixa eu
espreguiçar-me. Você com essa mania de alongar-me e eu, doida para ficar
agarrada ao travesseiro, puxava o lençol para cobrir-me. Inútil: queda de braço
vencida.
Você
venceu. Dei-me por vencida. Sei lá. Pouco importa. Agora minha boca tem gosto
de chocolate, afrodisíaco natural, acalma, esquenta, abraço apertado gostoso.
Assim, aquecida, fica mais fácil entender o seu desejo. Gosto de aceitar
desafios. Como faremos? Não diga. Será mais divertido procurarmos juntos o
caminho. Eu reparo até nas nuances dos tons de verde das folhas. O que mais
chama a atenção é a riqueza de detalhes. Isso é observação sua, não minha.
Talvez. A você falta certas sutilezas com as palavras. Certa vez confessou-me
isso, sem segredo, apenas um sou assim. Teremos que encontrar harmonia
nas nossas diferenças. A tampa certa da panela. Qualquer coisa que dê samba ou
outro ritmo. O seu caminhar é ligeiro. Gosto de parar e aspirar a brisa. Assim
vamos acertando os passos. O descompasso não combina com a gente.
Nossos
passos se encontraram de uma maneira tão engraçada. Não posso dizer que
tropecei em você. Marcamos um encontro: isso sim. Primeiro deixamos a escrita
aproximar-nos. Depois a troca de olhares numa manhã ensolarada. Eu desviando a
atenção para o mar, falando de barcos navios, caravelas. Quase contei a
Descoberta do Brasil por inteiro, com todos os detalhes, incluindo a receita
indígena de como assar um português. Que pânico! Você me encarando e
rindo. Daí vieram suas historias. Eu as ouvi, mesmo as que não contou. Sei
serenar a alma, ficar em silencio, calma, só para ver o que me escondes, só
para ler o que não escreves, só para perceber os gestos.
Que
gesto é esse? Os braços cruzados, os olhos controlando quem sai e entra de um
lugar público. Estava tão escuro. O filme não havia começado. O barulho do
amendoim misturado aos ruidosos passos procurando lugares. Trancado no seu
mundo, só via além. Os vultos misturados aos risos pareciam não pertencer a
nossa historia. Nem que eu estivesse no seu colo você perceberia a minha
presença. Senti-me tão sozinha aquele dia. Será que você percebeu? Que
pensamento passa nos seus olhos?
Meus
olhos espiam o seu jeito: doce, serio,companheiro,distante, o encontro no
desencontro. Você sapecou um beijo quando eu menos esperava e fiquei ruborizada. Ainda possuo essas graças:
coisa de menina. Acenei sem jeito. Não olhei para trás. O metrô em velocidade
sacudia todas as minhas ideias. Sua boca ainda seguia comigo. Os labios
quentes. As mãos geladas. Entrei na rua onde moro. Protegida pelas frondosas
árvores podia esconder-me de mim. A pashimina lilás, que tanto gosto,
envolvia-me no abraço ausente. O barulho da chave destrancava a porta. Agora as
portas se abriam e eu precisava dar-lhe uma resposta.
Minhas
mãos atenderão a seu desejo. Junto com as suas teclaremos a nossa historia.
Abandonei-me em seus abraços, repousando minha cabeça de
cansaços, para que nesta madrugada, de chuvas espirrando na janela, eu possa
adormecer, acolhida em seus braços. E se seus dedos entreabrem os meus labios,
buscando palavras ali guardadas, a buscá-las entre a língua repousada,
entrelaçando-as numa só linguagem; eu me deleito em deixar-me aquecida, assim
coberta pela mão querida, que me governa e me desgoverna, permitindo-me falar
pelos sentidos.
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