O prato vazio
“O poente que não
cicatriza
ainda fere a tarde.”
Jorge
Luis Borges
Naquele
Natal sentamos os três diante da mesa. Não uma ceia de costume: apenas pães,
pastas, frutas. Os olhos baixos, diante da cadeira vazia. Como recomeçar?
Erguer as taças lilases pela felicidade? Qual? Um esforço acima das nossas
forças nos fazia estar ali, sentados, olhando para o nada. Os olhos não se
cruzavam e nenhum sorriso estamparia qualquer alegria. Estávamos sem jeito.
Aquilo nos incomodava. Uma cena faltando personagem. A história impossível
escrevê-la novamente.
Não
coloca a taça na mesa antes de fazer o pedido! Um viva a nós! Pela alegria da
gente! Muita grana! Paz! Toca aqui! Toca aqui! Toca aqui! Toca aqui! Uau!!!
Foi. Finalmente vamos comer. Passa para cá a salada. Deixa que eu corto o peru,
mãe. Você quer o peito? O feijão fradinho, por favor. Acorda, cara! Passa para
cá as batatas. Desliga a televisão. Ah, não, deixa ligada. O cachorro pegou a
rúcula. Mãe, ele come rúcula? É o único cachorro do mundo que come rúcula.
Ihhhh....a pequena virou o refigerante no chão.Não importa. Pega o pano lá
área. Gente, hoje é festa, não se esquenta. Pô, essa comida tá boa
demais.Ninguém faz comida como a minha mãe.
Quando as lágrimas do meu filho começaram a cair no
prato, ele correu para o banheiro. Ficamos mudas. Chorava compulsivamente, as
lágrimas pingando escorriam junto com a água da torneira. Um rio se formava
pela casa a inundar nossas almas. Um grito sufocado entrava pelo corpo a querer
explodir. Ele trancou-se no quarto, cobriu o rosto com o lençol. Não quiz mais
falar. Inútil chamá-lo. Um esforço
enorme tal pedido. Todos queríamos nos enfiar nas cobertas e não acordarmos
nunca mais. Um flagrante havia provocado tal reação: minha filha colocou a
máquina fotográfica no automático. Pressenti que aquilo não era uma boa ideia,
mas não quis intervir. Coloquei-me em pé no lugar do foco. Ela chamou o irmão.
Ele veio. Ficou ao meu lado. Ela acionou a máquina. O irmão havia sumido. A água já fazia barulho no
banheiro.
Gente,
bolo de brigadeiro é demais. Você fez mousse de chocolate também? Adoro essa
torta de limão. Ai, não quero engordar. Depois do Natal emagrece. Que nada!
Depois tem o almoço de Natal. Receita especial: javiontem. Háháhá!!! Pior é ter
que comer o peru uma semana. Tem vez que você gosta. Eu vou entupir sua boca de
farofa. Tranquilo, depois vira salada de peru ao molho qualquer coisa. Sempre é
deliciosa. Não vende peru menor, mãe? Aqui em casa só tem peru grande, não é
não, irmão? Diminue o vinho. Minha mãe compra um vinho “Periquita” e não pode
falar bobagem. Besteira diverte a vida, mãe. Dá um abraço. Está tudo uma
delícia. Você é linda.
Os presentes estavam na árvore. Minha filha desolada
não sabia o que fazer. Ela havia enfeitado toda a casa sozinha. Pediu se podia.
Deixei. Enfeitou. Eu não teria forças. Aquilo era maior do que eu. Também
providenciou toda a ceia. Pedi apenas que fôsse diferente: algo mais simples. Não havia clima para comemoração. Comprou
presente para todos. Eu dei dinheiro para que os dois escolhessem o que
quisessem. Meu filho não saía do quarto. Continuava na cama, chorando. Pedi que
ele voltasse, pela irmã. Ele não quis. Sentei no sofá. Como ser fortaleza
diante de uma dor imensa? Eu via os peixes na rede e esta se rompendo. Eu não
conseguiria segurá-los. Eles se debatiam como a lutar pela vida, agonizando
diante da morte.
Eles
estavam encantados com os presentes. Eu havia comprado varias coisas durante o
ano.
Roupas para as férias,
perfumes, pequenos mimos e sempre um presente especial. Gostava da árvore
repleta. Um pilha no sapato de cada um. Desde que os cachorros começaram a
fazer parte das nossas vidas, duas cestas com biscoito, ossinhos e bolinhas de
couro comestível eram colocadas na árvore. Só podia abrir no dia seguinte, como
quando crianças. Naquele ano organizaram um amigo oculto para fazer bagunça e
abrir esse presente no dia. As adivinhações eram óbvias para uma família
pequena em tamanho e imensa em amor. A minha amiga oculta trabalha muiiiiito.
Eu ria. O meu amigo oculto entrou no mestrado de . . . jornalismo!!!! O caçula
ria. O meu amigo oculto vai salvar o planeta! Pô, você comprou uma coisa muito
cara. Ria sem graça e dizendo obrigado. A minha amiga oculta tá na hora de
casar e deixar o quarto para mim. Nem vem. A menina ria agradecida.
Naquele ano de 2007 encerrou-se o Natal para nós.
Nunca mais enfeitou-se uma árvore. Nunca mais colocou-se um adorno na porta.
Nunca mais fez-se uma ceia. As estrelas haviam parado de brilhar no nosso céu.
Tudo o que tinha o tom de azul nos olhava com lágrimas nos olhos. A vida do meu
filho caçula nos tinha sido roubada sem explicações.
O
burburinho das lojas tornou-se um trânsito engarrafado. Vontade de descer do ônibus
e sair correndo para nunca mais voltar. A compulsão de compras equilibrava em
braços alheios a nossa total inapetência natalina. As ruas enfeitadas ficaram
horríveis. Os prédios com pisca-pisca pareciam mais a entrada de um motel de
beira de estrada. O horror do Natal se desnudava junto com a nossa tragédia.
Nos olhávamos em silêncio e íamos cada
qual para o seu quarto. Na mesa, apenas uma toalha branca com a nossa
fotografia.
A cama vazia espiava. Triste, solitária, sem o calor
do dono. A casa ficando grande, do tamanho do silêncio. Cada um contruiu um
casulo. Todos os dias tecíamos nosso envólucro, onde permaneceríamos por
anos.
Foto: Vitoria Mitisuyo Wada |
Uma mente talentosa e um coração dorido. Chorei.
ResponderExcluirGrata pelo comentário.
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