flor da cana do brejo

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

O PRATO VAZIO

                                                 O  prato  vazio

                                                                                             
                                                                                                     “O poente que não cicatriza
                                                                                                       ainda fere a tarde.”
                                                                                                                      Jorge Luis Borges
                                                                                                       
           
            Naquele Natal sentamos os três diante da mesa. Não uma ceia de costume: apenas pães, pastas, frutas. Os olhos baixos, diante da cadeira vazia. Como recomeçar? Erguer as taças lilases pela felicidade? Qual? Um esforço acima das nossas forças nos fazia estar ali, sentados, olhando para o nada. Os olhos não se cruzavam e nenhum sorriso estamparia qualquer alegria. Estávamos sem jeito. Aquilo nos incomodava. Uma cena faltando personagem. A história impossível escrevê-la novamente.
            Não coloca a taça na mesa antes de fazer o pedido! Um viva a nós! Pela alegria da gente! Muita grana! Paz! Toca aqui! Toca aqui! Toca aqui! Toca aqui! Uau!!! Foi. Finalmente vamos comer. Passa para cá a salada. Deixa que eu corto o peru, mãe. Você quer o peito? O feijão fradinho, por favor. Acorda, cara! Passa para cá as batatas. Desliga a televisão. Ah, não, deixa ligada. O cachorro pegou a rúcula. Mãe, ele come rúcula? É o único cachorro do mundo que come rúcula. Ihhhh....a pequena virou o refigerante no chão.Não importa. Pega o pano lá área. Gente, hoje é festa, não se esquenta. Pô, essa comida tá boa demais.Ninguém faz comida como a minha mãe.
            Quando as lágrimas do meu filho começaram a cair no prato, ele correu para o banheiro. Ficamos mudas. Chorava compulsivamente, as lágrimas pingando escorriam junto com a água da torneira. Um rio se formava pela casa a inundar nossas almas. Um grito sufocado entrava pelo corpo a querer explodir. Ele trancou-se no quarto, cobriu o rosto com o lençol. Não quiz mais falar. Inútil  chamá-lo. Um esforço enorme tal pedido. Todos queríamos nos enfiar nas cobertas e não acordarmos nunca mais. Um flagrante havia provocado tal reação: minha filha colocou a máquina fotográfica no automático. Pressenti que aquilo não era uma boa ideia, mas não quis intervir. Coloquei-me em pé no lugar do foco. Ela chamou o irmão. Ele veio. Ficou ao meu lado. Ela acionou a máquina. O irmão  havia sumido. A água já fazia barulho no banheiro.
            Gente, bolo de brigadeiro é demais. Você fez mousse de chocolate também? Adoro essa torta de limão. Ai, não quero engordar. Depois do Natal emagrece. Que nada! Depois tem o almoço de Natal. Receita especial: javiontem. Háháhá!!! Pior é ter que comer o peru uma semana. Tem vez que você gosta. Eu vou entupir sua boca de farofa. Tranquilo, depois vira salada de peru ao molho qualquer coisa. Sempre é deliciosa. Não vende peru menor, mãe? Aqui em casa só tem peru grande, não é não, irmão? Diminue o vinho. Minha mãe compra um vinho “Periquita” e não pode falar bobagem. Besteira diverte a vida, mãe. Dá um abraço. Está tudo uma delícia. Você é linda.
            Os presentes estavam na árvore. Minha filha desolada não sabia o que fazer. Ela havia enfeitado toda a casa sozinha. Pediu se podia. Deixei. Enfeitou. Eu não teria forças. Aquilo era maior do que eu. Também providenciou toda a ceia. Pedi apenas que fôsse diferente: algo mais simples.    Não havia clima para comemoração. Comprou presente para todos. Eu dei dinheiro para que os dois escolhessem o que quisessem. Meu filho não saía do quarto. Continuava na cama, chorando. Pedi que ele voltasse, pela irmã. Ele não quis. Sentei no sofá. Como ser fortaleza diante de uma dor imensa? Eu via os peixes na rede e esta se rompendo. Eu não conseguiria segurá-los. Eles se debatiam como a lutar pela vida, agonizando diante da morte.
            Eles estavam encantados com os presentes. Eu havia comprado varias coisas durante o ano.
Roupas para as férias, perfumes, pequenos mimos e sempre um presente especial. Gostava da árvore repleta. Um pilha no sapato de cada um. Desde que os cachorros começaram a fazer parte das nossas vidas, duas cestas com biscoito, ossinhos e bolinhas de couro comestível eram colocadas na árvore. Só podia abrir no dia seguinte, como quando crianças. Naquele ano organizaram um amigo oculto para fazer bagunça e abrir esse presente no dia. As adivinhações eram óbvias para uma família pequena em tamanho e imensa em amor. A minha amiga oculta trabalha muiiiiito. Eu ria. O meu amigo oculto entrou no mestrado de . . . jornalismo!!!! O caçula ria. O meu amigo oculto vai salvar o planeta! Pô, você comprou uma coisa muito cara. Ria sem graça e dizendo obrigado. A minha amiga oculta tá na hora de casar e deixar o quarto para mim. Nem vem. A menina ria agradecida.
            Naquele ano de 2007 encerrou-se o Natal para nós. Nunca mais enfeitou-se uma árvore. Nunca mais colocou-se um adorno na porta. Nunca mais fez-se uma ceia. As estrelas haviam parado de brilhar no nosso céu. Tudo o que tinha o tom de azul nos olhava com lágrimas nos olhos. A vida do meu filho caçula nos tinha sido roubada sem explicações.
            O burburinho das lojas tornou-se um trânsito engarrafado. Vontade de descer do ônibus e sair correndo para nunca mais voltar. A compulsão de compras equilibrava em braços alheios a nossa total inapetência natalina. As ruas enfeitadas ficaram horríveis. Os prédios com pisca-pisca pareciam mais a entrada de um motel de beira de estrada. O horror do Natal se desnudava junto com a nossa tragédia. Nos olhávamos em silêncio e íamos  cada qual para o seu quarto. Na mesa, apenas uma toalha branca com a nossa fotografia.

            A cama vazia espiava. Triste, solitária, sem o calor do dono. A casa ficando grande, do tamanho do silêncio. Cada um contruiu um casulo. Todos os dias tecíamos nosso envólucro, onde permaneceríamos por anos.          
Foto: Vitoria Mitisuyo Wada

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