Palavras
Cruzadas
Lúcia Gomes
Vamos escrever a nossa historia, enquanto ainda vive na memoria?
Ah, não
me falem de rimas pobres. Essa não é a questão, de novo não.
Li o
e-mail a indagar-me o porquê de tal proposta. Escrever dizem ser um
ato solitario. O mundo está cheio de mentiras. Meus personagens me
atazanam as ideias e falam mais do que eu.
Quatro
mãos juntas ao piano a dedilhar uma canção nova para cantarmos nos
momentos de silencio e quebrarmos a rotina. Minhas duas mãos poderão
tocar as suas. É quase inevitavel. Nesse momento nossas palavras
entrelaçadas soariam a mesma nota: um sol qualquer. Nossos risos
esbarrariam no calor dos labios. Possivelmente todos os teclados
tocariam ao mesmo tempo a nossa música.
Posso
até ouvir meu coração acelerado,você de maestro a reger. Não sei
como realizar tal proposta separados pela tecnologia a furtar-me o
que mais preciso: o roçar dos seus braços nos meus. Também esse
cheiro que não me pertence e muda o ar do quarto. Ou as mãos, uma
sobre a outra,os dedos apertados a segurar para que não partam. Bom
esse aconchego. A certeza, mesmo que provisoria, da sua proteção. O
calor que sobe pelo braço e arrepia o pescoço. Suspendo o ombro,
reviro as costas, sei que você vai afastar os meus cabelos castanhos
e longos a divertir-se com o meu riso: Assim não vale! Você já
saberia a resposta e riria do lugar comum. O comum,
às vezes, é tão melhor.
Bom
e gostoso. Coloquei o capuccino fumegante na caneca de cerâmica. As
mãos quentinhas desacostumadas a esse inverno. Encostei-me na porta
da cozinha a olhar as maitacas empoleiradas nas telhas. Um bando
inteiro. A empregada da vizinha gritava: “Milagre! Milagre! Só
pode ser um sinal de Deus.” Lindas de fato. O seu cantar é
atraente: todas ao mesmo tempo num delirio humano de deixa
eu terminar de falar. Procurava
aprender com elas.Um trinado em conjunto. Arruaça logo de manhã. Eu
o empurrava para lá dizendo Pára, agora não, deixa eu
espreguiçar-me. Você com essa mania de alongar-me e eu, doida para
ficar agarrada ao travesseiro, puxava o lençol para cobrir-me.
Inútil: queda de braço vencida.
Você
venceu. Dei-me por vencida. Sei lá. Pouco importa. Agora minha boca
tem gosto de chocolate, afrodisíaco natural, acalma, esquenta,
abraço apertado gostoso. Assim, aquecida, fica mais fácil entender
o seu desejo. Gosto de aceitar desafios. Como faremos? Não diga.
Será mais divertido procurarmos juntos o caminho. Eu reparo até nas
nuances dos tons de verde das folhas. O que mais chama a
atenção é a riqueza de detalhes. Isso
é observação sua, não minha. Talvez. A você falta certas
sutilezas com as palavras. Certa vez confessou-me isso, sem segredo,
apenas um sou assim. Teremos
que encontrar harmonia nas nossas diferenças. A tampa certa da
panela. Qualquer coisa que dê samba ou outro ritmo. O seu caminhar é
ligeiro. Gosto de parar e aspirar a brisa. Assim vamos acertando os
passos. O descompasso não combina com a gente.
Nossos passos se encontraram de uma maneira tão engraçada. Não
posso dizer que tropecei em você. Marcamos um encontro: isso sim.
Primeiro deixamos a escrita aproximar-nos. Depois a troca de olhares
numa manhã ensolarada. Eu desviando a atenção para o mar, falando
de barcos navios, caravelas. Quase contei a Descoberta do Brasil por
inteiro, com todos os detalhes, incluindo a receita indígena de como
assar um português. Que pânico! Você me encarando e rindo. Daí
vieram suas historias. Eu as ouvi, mesmo as que não contou. Sei
serenar a alma, ficar em silencio, calma, só para ver o que me
escondes, só para ler o que não escreves, só para perceber os
gestos.
Que gesto é esse? Os braços cruzados, os olhos controlando quem
sai e entra de um lugar público. Estava tão escuro. O filme não
havia começado. O barulho do amendoim misturado aos ruidosos passos
procurando lugares. Trancado no seu mundo, só via além. Os vultos
misturados aos risos pareciam não pertencer a nossa historia. Nem
que eu estivesse no seu colo você perceberia a minha presença.
Senti-me tão sozinha aquele dia. Será que você percebeu? Que
pensamento passa nos seus olhos?
Meus olhos espiam o seu jeito: doce, serio,companheiro,distante, o
encontro no desencontro. Você sapecou um beijo quando eu menos
esperava e fiquei ruborizada. Ainda possuo essas graças: coisa de
menina. Acenei sem jeito. Não olhei para trás. O metrô em
velocidade sacudia todas as minhas ideias. Sua boca ainda seguia
comigo. Os labios quentes. As mãos geladas. Entrei na rua onde moro.
Protegida pelas frondosas árvores podia esconder-me de mim. A
pashimina lilás, que tanto gosto, envolvia-me no abraço ausente. O
barulho da chave destrancava a porta. Agora as portas se abriam e eu
precisava dar-lhe uma resposta.
Minhas mãos atenderão a seu desejo. Junto com as suas teclaremos a
nossa historia.
Abandonei-me
em seus abraços, repousando minha cabeça de cansaços, para que
nesta madrugada, de chuvas espirrando na janela, eu possa adormecer,
acolhida em seus braços. E se seus dedos entreabrem os meus labios,
buscando palavras ali guardadas, a buscá-las entre a língua
repousada, entrelaçando-as numa só linguagem; eu me deleito em
deixar-me aquecida, assim coberta pela mão querida, que me governa e
me desgoverna, permitindo-me falar pelos sentidos.
Foto: Lúcia Gomes Pontes sobre o mangue |