LÁGRIMAS DE NOSSA SENHORA
Talvez o que vou contar não seja verdade. Pode ser que sim, ou não. Eu a ouvi de uma avó que escutou de outra, de outra, de outra cujo nome se perdeu nas paredes da casa. Ouço, agora em mim, eu a vivo.
Nunca gostei da casa grande. O pé direito alto, as janelas enormes, os corredores compridos demais para os meus pés pequenos. Gostava da menina a me acompanhar. Ora amiga, ora dedo duro, conforme o próprio interesse. Daí veio o meu gosto por esconder-me embaixo da cama. Pequena, magrinha, impossivel de achar no meio de tantas colchas. Dali eu escapulia para o jardim, descia a escadinha no meio do mato, circundava a antiga senzala e ía ter com vó Rosa, o seu cachimbo, seu jeito de olhar para o lado, vendo em mim a travessura e, lá dentro, gostando. Eu sentava aos seus pés e esperava por Pedro. Só aí ela ía bater o cachimbo no caixote, ajeitar o tronco e chamar a gente de curumim. O que curumim tá fazendo aqui com a velha? Depois vem gente lá da casa falar que eu conto mentira e essa curuminha não dorme.Tossia, batia o pé calejado, puxava a saia rodada, estampada e colorida.
Eu me divertia com Pedro, as pernas esticadas, a calça branca com um cordão, nem ligando. Às vezes deitava no chão de barro com os braços sob a cabeça. A velha não tem brinquedo. Você não tem suas bonecas? Eu mostrava. Tinha trazido junto. Ela ajeitava o lenço rendado no cabelo, olhava de novo pra nós e via que não tinha jeito. Enxotar dali: pior. Ficava quieta, sentada no seu tronco, olhando o telhado da casinha. Na casa ninguém mexia com ela. Uns diziam ser benzedeira, outros bruxa, descendente de indio, escrava alforriada, mãe de leite. Vó Rosa era uma historia inventada por cada um. Percebia que tinham medo: Vai que lança uma praga e a plantação se perde. Outras horas respeito: Corre lá e pede uma erva para sarar o menino. Assim ela foi ficando ali. Pela manhã o garoto entragava o leite e um pão. Depois mandavam as sobras do almoço. Ela comia com a mão, fazendo um bolo e enfiando na boca. Ria sem dentes, pegava a bengala e lavava o rosto no latão de água.Tinha uma marca de mordida de cobra na perna e uma cicatriz grande nas costas. Mostrou uma única vez.
Certo dia eu e Pedro entramos esbaforidos, fechando a porta e gritando a cobra, a cobra, a cobra. Ela levantou-se do tronco, abriu a porta e viu a bicha fugindo pro mato. Foi atrás dela. Nossos olhos arregalados espiavam encostando a porta. Logo voltou. Tinha dado um nó na cobra e batia com a cabeça dela no chão. Morre bicho ruim que rasteja onde não deve. Soubemos então da marca da mordida, ainda menina, salva por milagre de um curandeiro que já tinha partido. Sobre a cicatriz nas costas ela nunca contou.
Vó Rosa nos ensinava cantigas. Eu e Pedro dançávamos. Tum! Tum! Tum! Bateu na porta. Tum! Tum! Tum! Vai ver quem é. É Benedito. É Benedito de Nazaré. Pedro pegava minhas mãos e eu rodava feliz, segurando e balançando o vestido. Lá no mato tem folha, tem rosario de Nossa Senhora. Lá no mato tem folha, tem rosario de Nossa Senhora. Pedro jogava sementes para cima e ríamos tentando pegá-las com as mãos. Vó Rosa batia palmas e marcava o ritmo com o pé. Sorria um riso largo, os olhos negros, o coração em festa. Tem aroeira de Benedito. É Benedito que nos valha nessa hora. Ali, naquele casebre simples, de madeira rústica, vento entrando pelas frestas, aprendi dança de roda.
Benedito, negrinho, viveu na fazenda de Nazaré. Amigo de vó Rosa, andava pelos matas boas léguas de terra para ter com ela. Juntos cresceram entre as duas fazendas, balançando as folhas das matas, correndo pelos barrancos, inventando historias e cantigas. Algumas escutavam no campo, em meio a colheita. Então acrescentavam aqui, subtraiam ali e davam nó em cipó. Benedito dizia ter visto Nossa Senhora num manto azulado, vestido branco, trazendo um rosario feito de umas sementes chamadas “lágrimas de Nossa Senhora”. Tomaram-no por aluado, menino mentiroso, invencionice para aparecer. Benedito não dava ouvidos. Vó Rosa acreditava nele. Numa de suas peraltices para atravessar as fazendas, esbarrou o olho esquerdo no arame farpado. Vó Rosa não sabe dizer se ficou cego ou não conseguia mais abrir o olho. Verdade: escorria sempre uma lágrima pela tristeza de cada um. Na roça começaram a dizer que Nossa Senhora tinha fechado o olho dele para que ele a visse com o coração. Benedito cresceu cantando. Quando pensavam não ver, o olho direito via pelos dois. Um dia Benedito desapareceu na mata. Quem por ela anda ainda escuta suas canções. Melhor fazer o sinal da cruz e rezar uma Ave Maria. Vai que Benedito aparece com Nossa Senhora do lado, o manto azul, o rosario.
Batia novamente o cachimbo. Firmava o pé no chão e matutava outra historia pra contar. A brisa da tarde entrava pelas frestas e Pedro tapava os buracos com barro. Eu sentava as bonecas em fila: plateia que me acompanhava. Olhando para um lado, para o outro, assuntando o barulho da folhas, passos de bichos, piados de pássaros: vó Rosa farejava o ar. Vai chover não. É só arrumação das plantas e da passarinhada. Daqui a pouco sossega. Larga o barro, curumim, deixa isso pra lá. Dá cá essa boneca, curuminha. Cê fez roupa nova pra ela? Quero um lenço novo também. Fiz que não.A menina que vigia fez. Ela ria de não se aguentar. Vigia quem? Cês dois? Até Benedito com um olho só via melhor que ela. Olhei para Pedro. Pedro olhou para mim. Adivinhávamos o que o outro pensava só no olhar. Um segredo, um gesto, um riso, um espiar de canto, tudo tinha significado. Nunca combinamos nada. Nasceu assim essa cumplicidade: um dia nossos olhos se cruzaram, o azul do ceu, o verde das árvores. Agora já feito, seguíamos felizes. Vó Rosa olhava para um, virava o olho do Benedito para o outro. Saíamos correndo.
Perto da casa grande as pessoas trabalhavam. Tinha sempre alguém para mandar. Por isso preferíamos contornar o casebre até o rio pedregoso, com pequenas quedas d'água e ficar por lá. A gente entrava no rio de roupa mesmo. A água batia nos joelhos. Vez que subia e molhava a barra do vestido, ou as calças. Nós juntávamos as quatro mãos em conchas e os peixinhos nadavam no pequeno lago improvisado. Bom sentar na areia do rio e ver a minha saia boiando. Pedro achava que parecia nuvem e enfeitava meu vestido com flores. Se a brincadeira cansava, buscávamos uma fruta qualquer. Depois voltávamos com os braços carregados para o casebre. Empurrávamos a porta de leve. Vó Rosa dormia na cama de palha coberta com uma manta muito linda de saco de colheita. Ela mesma que fez. Costurou os sacos, desfiou a barra e fez uns enfeites com os fios dando nós. Assim coberta parecia um bicho peludo. Andávamos na ponta dos pés. Os dedos nos labios. Nenhum sussuro. A respiração suspensa. Quem tá aí!? Ela pulava da cama enrolada na manta, os olhos apertados, caçando a bengala. Encostados do outro lado, imoveis, esperávamos que despertasse. Ah, são vocês? Onde foram? Curumim não tem o que fazer não? Mostrávamos as frutas. Ela levantava mancando, pegava uma gamela e arrumava do jeito dela. Deus lhes pague, a velha faz gosto. A gente aliviado via a bengala encostada. Se esta servia de apoio para o avançado da idade, outros fins tinha nas pernas de quem apoquentasse.
A tarde escurecia e tínhamos que voltar à casa grande. Demos um beijo ao mesmo tempo nas faces de vó Rosa. Outro beijo atirado da porta. Pedro agarrou a minha mão e saiu correndo me puxando. Enfiou a mão no bolso da calça e tirou um terço lindo feito de “lágrimas de Nossa Senhora”. Toma, disse estalando um beijo na minha testa. Seus olhos azuis brilhavam e o sorriso mais lindo do mundo refletia nos meus labios. Tirei o laço de fita azul dos cabelos e amarrei nossos dedos. Mãos agarradas, os dedos cruzados, dançando e cantando, nos embrenhamos pelas plantações de milho, de mandioca, de tudo que ali crescia mais rápido do que nós.
“Levantei de madrugada pra varrer a Conceição
Encontrei Nossa Senhora com seu raminho na mão.
Eu pedi ela o raminho. Ela me deu seu cordão.
O cordão era tão grande que do ceu rastava o chão
Ainda dava sete voltas em redor do coração.
Numa ponta tem São Pedro, na outra senhor São João.
No meio tem um letreiro da Virgem de Conceição.”
(Lúcia Gomes - direitos reservados)
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Foto: Lúcia Gomes Paraty |