flor da cana do brejo

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024




                                                       O Dia da Passeata

 

                                                                                           Para Beth, minha irmã caçula,

que nos deixou antes da aventura "Diretas Já"

                                                                                                                                                                                           

    Eu quero um ovo recheado. O que você quer? Igual a você. Eu não vou pedir dois ovos recheados. Minha irmã falava isto prendendo o riso, prestes a escancarar a ideia passada na cabeça. Criança, nada entendi. Peça outra coisa. Veja quanta coisa gostosa. Olhei para cima, indecisa. Meus olhos não alcançavam o balcão da Confeitaria Colombo: os lustres maravilhosos, a decoração impecável. Parecia um palácio. Na verdade olhava para a minha irmã. Ela disse que ia pedir uma coxinha de galinha. Eu falei rápido: também quero. Assim não é possível! Ela oscilava entre a raiva e o riso. "Dá dois ovos recheados", disse ao balconista, não contendo a risada, "e dois sucos de laranja". Depois olhou para mim e soltou um "Eu te mato”. Segurei o ovo assustada. Está podre? Não, não está. Come logo e vamos andando. Andar aliás é o que eu estava fazendo há horas. Meus pés doíam muito. "Estou com os pés doendo". Está bem, ela respondeu, como quem concordava com a dor dos próprios pés. Entramos numa sapataria. Sentamos e aguardamos o rapaz que logo chegou gentil e solícito. Minha irmã escolheu um sapato. Não gostou. "É bonito", respondi. "Fica quieta", ela sussurrou no meu ouvido. Pediu outro. Foram tantos que deixei para lá. Meus olhos percorriam os sapatos contando os pares. Já estava de meias massageando os dedos. Ela experimentou a loja inteira. “Não gostei de nada”, respondeu ao rapaz. "Calça os sapatos". Calcei os mesmos sapatos que usava. Levantei da cadeira e saí de mãos dadas com ela. "Seus pés melhoraram?". Fiz que sim com a cabeça e fomos passeando pelo centro da cidade. Sempre achei o centro lindo e o melhor lugar para acompanhar qualquer um lá de casa que quisesse fazer compras. Não exatamente pelas compras. Só ganhava presente no aniversário e no Natal. Era mesmo pelo doce ou o salgado da Confeitaria Colombo.

     A noite já descia rápido e tudo foi tomando um tom cinza. As lojas fechando as portas, o céu carregado de nuvens prenunciando a chuva. Andávamos mais rápido para pegarmos o ônibus antes que a cidade virasse um charco e nossos pés começassem a coaxar nas poças.

     Ouvimos um estouro absurdo. Surgiam pessoas correndo de todos os lados. Minha irmã voava pela rua. Eu era arrastada, meus passos não conseguiam acompanhar aquela fuga, eu caía e levantava. "Vai chover agora?" Minha irmã não falava, só corria e eu já não acompanhava os passos. De repente, na rua em que estávamos, vários jovens corriam gritando "Abaixo a Ditadura! Abaixo a Ditadura!" Atrás deles homens fardados, com escudo, paus, cachorros, avançavam. Ouvi o trotar dos cavalos. Só enxergava pernas, mais nada. Muitas pernas corriam, cachorros latiam. "Porque estamos correndo? Você é professora. Mostra a sua carteira da Faculdade de Sociologia." Minha boca foi tapada e eu já não sentia nem os pés, nem mais nada. Comecei a chorar. Tudo estava fechado. Minha irmã parou na frente de um prédio comercial e bateu para o porteiro abrir. Ele continuou sentado, fingindo não ver. Ela então me levantou do  chão e me encostou na porta para que o porteiro me visse. Meu rosto estava lá: apavorado. Mais que tudo meu olhos grandes, verdes e inchados de chorar. Disfarçadamente ele abriu a porta de ferro, pintada de verde escuro. Entramos. Ela agradeceu e ele apontou o balcão. Fui colocada ali embaixo e minha irmã ficou perto, abaixada do jeito que pôde. O porteiro continuou sentado vigiando a rua como se nada lhe interessasse.

     Fiquei ali, sentada no chão, os braços envolvendo as pernas, tudo escuro. Quis falar com a minha irmã, mas ela fez sinal para eu não abrir a boca. Lá fora os gritos continuavam, barulhos de bombas estouravam e nem era São João. Espiei por uma falha no balcão. Nunca tinha visto algo igual,

     Eu estava apertada, queria ir ao banheiro, mas sabia que nada podia falar. Comecei então a contar uma história para eu mesma. Eu estou aqui, escondida da minha irmã caçula. Ela nunca vai me achar. Pode contar "Um, dois três e já". Nem no mil ela conseguiria bater na árvore e gritar "Achei!!!". Eu estou vendo cachorros grandes presos na coleira. Eles latem. Querem ser soltos e brincar no parque. Eu posso subir no galho mais alto. Me pega! Me pega! "Não vale, ela respondia, é muito alto". Vem, eu chamava. Aí a brincadeira já era de subir na árvore e balançar no galho. Pulávamos lá do alto e corríamos para ver quem chegava primeiro à fonte do Parque da Cidade. Bebíamos água, molhávamos os pés e saíamos encharcadas. Bem, isso sempre foi culpa da boca do índio da fonte que cuspia a água do jeito dele. Disparávamos para sentar nas pedras e secar os vestidos ao sol. Os cavalos estão chegando. Só vi as patas. São bonitos. Usam um ferro no lugar de sapatos, cavalgam com velocidade. Anda, sobe na garupa. Minha irmã caçula ria. Segura firme na minha cintura, tá? Ela apertava com força. Lá íamos nós por um relva imensa. O cavalo parando para comer capim. A gente deitada olhando o céu e enxergando bichos nas nuvens. As pálpebras já pesavam com sono. Minha irmã me acordou. “Vamos”. Ela agradeceu ao porteiro. Eu estava mais dormindo que acordada. Disse obrigada. A porta bateu tão logo saímos.

           Fomos caminhando devagar até o ponto de ônibus. Não passava nada. Ela demonstrava preocupação com a hora. Seguimos andando para outro ponto. Muito tempo depois pegamos um ônibus que nos tirasse dali. Vi que não ia para a nossa casa. Fiquei quieta. Descemos em outro bairro e ali sim encontramos um ônibus que nos traria de volta a casa.

     Nossa chegada foi triunfante. Mamãe aos berros não deixava que minha irmã falasse. Eu já estava acostumada. Acontecia o mesmo quando uma xícara quebrava. Minha mãe gritava com a xícara em cacos na mão querendo que um de nós confessasse a culpa. Tínhamos sempre uma xícara quebrada, uma criança assustada, culpada, e nenhuma solução. Meu pai me sacudia como se eu fosse uma boneca e queria certificar-se de eu estar viva. Meus outros irmãos olhavam em silêncio. Foram dos gritos à cara amarrada. A casa emudeceu. Eu e minha irmã mais velha jantamos. Ela foi para o quarto dela.

     Vesti minha roupa de dormir e deitei na cama que dividia com a minha irmã caçula. Ela não me deixava dormir querendo saber o que tinha ocorrido. Eu nem sono tinha. Já dormira o suficiente no ônibus. "Onde você estava?" Debaixo de um balcão. "O que é isto?" É como se esconder debaixo da cama. "Você brincou de pique sem me levar?" Não, apenas fiquei sentada. "Coisa sem graça". Eu vi uma passeata. "Uma passeata?" É. "Como é uma passeata?" Não sabia explicar. Deitamos de bruços e comecei a desenhar no travesseiro. Imagina uma boiada desembestada, os bois caindo um em cima do outro. "É isto?" Quase. Lembra daquela enchente que a tampa do bueiro estourou, formou um chafariz e a rua se transformou num rio? "Lembro” Uma passeata é como uma coisa que não dá para segurar. "Como o vento?" Mais: é um vendaval de gente. Ela me abraçou assustada. “O vendaval jogou você no balcão?” Fiz que sim. Então amanhã a gente vai lá, bate no vendaval, bate no balcão e bate na passeata.” Nos abraçamos e dormimos diante da Noite que se estenderia por anos.


(Lúcia Gomes - direitos reservados)

(Conto escrito aos 19 anos e publicado em Suplemento Literário do jornal Tribuna da Imprensa, que estava sob censura prévia. Tive vários trabalhos publicados como colaboradora e censurados. A Tribuna da Imprensa publicava os contos e poemas censurados em branco, páginas brancas. Este conto passou sem cortes.)