flor da cana do brejo

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

PALAVRAS CRUZADAS

                                                   Palavras Cruzadas

           
            Vamos escrever a nossa historia, enquanto ainda vive na memoria?
            Ah, não me falem de rimas pobres. Essa não é a questão, de novo não.
            Li o e-mail a indagar-me o porquê de tal proposta. Escrever dizem ser um ato solitario. O mundo está cheio de mentiras. Meus personagens me atazanam as ideias e falam mais do que eu.
            Quatro mãos juntas ao piano a dedilhar uma canção nova para cantarmos nos momentos de silencio e quebrarmos a rotina. Minhas duas mãos poderão tocar as suas. É quase inevitavel. Nesse momento nossas palavras entrelaçadas soariam a mesma nota: um sol qualquer. Nossos risos esbarrariam no calor dos labios. Possivelmente todos os teclados tocariam ao mesmo tempo a nossa música.
            Posso até ouvir meu coração acelerado,você de maestro a reger. Não sei como realizar tal proposta separados pela tecnologia a furtar-me o que mais preciso: o roçar dos seus braços nos meus. Também esse cheiro que não me pertence e muda o ar do quarto. Ou as mãos, uma sobre a outra,os dedos apertados a segurar para que não partam. Bom esse aconchego. A certeza, mesmo que provisoria, da sua proteção. O calor que sobe pelo braço e arrepia o pescoço. Suspendo o ombro, reviro as costas, sei que você vai afastar os meus cabelos castanhos e longos a divertir-se com o meu riso: Assim não vale! Você já saberia a resposta e riria do lugar comum. O comum, às vezes, é tão melhor.
            Bom e gostoso. Coloquei o capuccino fumegante na caneca de cerâmica. As mãos quentinhas desacostumadas a esse inverno. Encostei-me na porta da cozinha a olhar as maitacas empoleiradas nas telhas. Um bando inteiro. A empregada da vizinha gritava: “Milagre! Milagre! Só pode ser um sinal de Deus.” Lindas de fato. O seu cantar é atraente: todas ao mesmo tempo num delirio humano de deixa eu terminar de falar. Procurava aprender com elas.Um trinado em conjunto. Arruaça logo de manhã. Eu o empurrava para lá dizendo Pára, agora não, deixa eu espreguiçar-me. Você com essa mania de alongar-me e eu, doida para ficar agarrada ao travesseiro, puxava o lençol para cobrir-me. Inútil: queda de braço vencida.
            Você venceu. Dei-me por vencida. Sei lá. Pouco importa. Agora minha boca tem gosto de chocolate, afrodisíaco natural, acalma, esquenta, abraço apertado gostoso. Assim, aquecida, fica mais fácil entender o seu desejo. Gosto de aceitar desafios. Como faremos? Não diga. Será mais divertido procurarmos juntos o caminho. Eu reparo até nas nuances dos tons de verde das folhas. O que mais chama a atenção é a riqueza de detalhes. Isso é observação sua, não minha. Talvez. A você falta certas sutilezas com as palavras. Certa vez confessou-me isso, sem segredo, apenas um sou assim. Teremos que encontrar harmonia nas nossas diferenças. A tampa certa da panela. Qualquer coisa que dê samba ou outro ritmo. O seu caminhar é ligeiro. Gosto de parar e aspirar a brisa. Assim vamos acertando os passos. O descompasso não combina com a gente.
            Nossos passos se encontraram de uma maneira tão engraçada. Não posso dizer que tropecei em você. Marcamos um encontro: isso sim. Primeiro deixamos a escrita aproximar-nos. Depois a troca de olhares numa manhã ensolarada. Eu desviando a atenção para o mar, falando de barcos navios, caravelas. Quase contei a Descoberta do Brasil por inteiro, com todos os detalhes, incluindo a receita indígena de como assar um português. Que pânico! Você me encarando e rindo. Daí vieram suas historias. Eu as ouvi, mesmo as que não contou. Sei serenar a alma, ficar em silencio, calma, só para ver o que me escondes, só para ler o que não escreves, só para perceber os gestos.
            Que gesto é esse? Os braços cruzados, os olhos controlando quem sai e entra de um lugar público. Estava tão escuro. O filme não havia começado. O barulho do amendoim misturado aos ruidosos passos procurando lugares. Trancado no seu mundo, só via além. Os vultos misturados aos risos pareciam não pertencer a nossa historia. Nem que eu estivesse no seu colo você perceberia a minha presença. Senti-me tão sozinha aquele dia. Será que você percebeu? Que pensamento passa nos seus olhos?
            Meus olhos espiam o seu jeito: doce, serio,companheiro,distante, o encontro no desencontro. Você sapecou um beijo quando eu menos esperava e  fiquei ruborizada. Ainda possuo essas graças: coisa de menina. Acenei sem jeito. Não olhei para trás. O metrô em velocidade sacudia todas as minhas ideias. Sua boca ainda seguia comigo. Os labios quentes. As mãos geladas. Entrei na rua onde moro. Protegida pelas frondosas árvores podia esconder-me de mim. A pashimina lilás, que tanto gosto, envolvia-me no abraço ausente. O barulho da chave destrancava a porta. Agora as portas se abriam e eu precisava dar-lhe uma resposta.
            Minhas mãos atenderão a seu desejo. Junto com as suas teclaremos a nossa historia.

            Abandonei-me em seus abraços, repousando minha cabeça de cansaços, para que nesta madrugada, de chuvas espirrando na janela, eu possa adormecer, acolhida em seus braços. E se seus dedos entreabrem os meus labios, buscando palavras ali guardadas, a buscá-las entre a língua repousada, entrelaçando-as numa só linguagem; eu me deleito em deixar-me aquecida, assim coberta pela mão querida, que me governa e me desgoverna, permitindo-me falar pelos sentidos.