flor da cana do brejo

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

                                                   BEIJOS DE ESPERA

 

Cadê você? Você quer um beijo por telefone? Posso ligar para dar Boa Noite? Estou esperando... Onde você está?

É tão curioso e inusitado começar a corresponder-se com alguém sem nunca ter visto o seu rosto, sem saber o som da sua voz ou o cheiro que emana do seu corpo. Talvez este ar de segredo é que tenha me atraído. Assim, sem perceber, fui me despindo diante de você. Rendi-me e mergulhei no desconhecido sem procurar entender. Engravidei só das intenções, por lhe querer.

Você mexe comigo de uma tal maneira e me toca sem me dar tempo de eu fugir de mim mesma, enfiar-me nos lençóis, cobrir a cabeça, espiá-lo escondida, criança travessa.

Minha querida, você está por aí? Já estou aqui. Beijos de chegança.

Tudo tão novo. Você foi chegando e eu não hesitei. Imediatamente me arrisquei diante desta alegre surpresa. Fui logo respondendo.

Antes que você comece a fazer o interrogatório, lá vai. Estou de bermuda e camiseta regata vermelha. A camisola branca, que você vive falando, não é sensual. Ela tem preguinhas, rendinhas, alcinhas e vai até o joelho. Parece mais camisolinha de criança. Beijos de sem roupa.

Minha anjinha querida, queridíssima, estou reparando que você hoje está mais sensual, mais provocante e provocativa. Você foi logo se antecipando a mim. E se eu quisesse falar de pureza, de religião, do meu possível exílio num monastério, de coisas inocentes como sua camisolinha transparente? Beijos pelados.

As mãos deslizavam rapidamente sobre o teclado. As páginas corriam numa velocidade estonteante. Nos embolávamos na ânsia de falar, de estarmos juntos como podíamos. Nossas palavras se misturavam. Cheguei a ler em você o que havia escrito em mim. Você conseguiu ocupar comigo o mesmo espaço, os mesmos versos, descobrindo-me sem me dar tempo de guardar a minha alma debaixo do travesseiro.

Se eu lhe der tempo, tudo se esvairá. No amor não se dá tempo. Sem antes, nem depois. Você se despe, se mostra doce e inteira. Agora sim, nesse momento posso ver sua alma, pronta para me receber. Saindo agora do forno. Beijos quentes.

Estourou um trovão imenso aqui. O quarto ficou azul.

Você me inspira, um sentimento bom nasce dentro de mim e vem o que de melhor está guardado, flui de maneira leve, minhas mãos e minhas ideias deslizam simplesmente, sem retoques. Por isto eu te amo, porque você chama o meu lado mais belo e eu respondo.

A chuva está caindo. A casa em silêncio. As paredes escutam cúmplices. Apenas nossas palavras sabem o segredo.

Quando o relâmpago espocou cruzando o céu em faíscas, o quarto azul acendeu em respingos de chuva. A luz apagou.

Minhas mãos tateavam a procura do celular no meu colo. Enviei a mensagem.

Tive que parar no meio de um sorriso.

Não tem problema, eu completo.



    (Lúcia Gomes - direitos reservados)

    ( conto escrito em 7/04/2010)


Foto: Lúcia Gomes

    

 

domingo, 4 de fevereiro de 2024


                                              PIQUE ESCONDE




Busco um lugar dentro de mim onde possa esconder-me e não me achar mais

 

Assim, escondida de mim mesma,

Não encontraria mais esse vazio que me habita

Espreitando-me a ausência

 

Criança travessa a olhar no buraco do muro

O segredo alheio

 

Sou péssima companhia para mim mesma.

 

Deixo-me lá, deitada na cama,

Entorpecida de remédios,

Sem mover-me.

 

Aqui fora, brinco que sou outra.

Tenho o dom de fazer as plantas florirem

Me esparramo pelo chão com os cachorros.

 

Minha alma, que não precisa de alimento,

Brinca que vive num corpo que não tenho.


                                                 Foto: Lúcia Gomes

 
POENTE
Quando o sol se esconde
atrás da montanha
eu vejo que a minha dor
é maior que a Cordilheira dos Andes
nada é como antes
levanto no meio da noite
corro para o teu quarto
e te procuro na cama
no meio da madrugada
abraço teu travesseiro
sinto teu cheiro menino
e meu coração se encolhe
cada vez mais pequenino
hoje faço as contas
de subtrair os dias
para aguardar o momento
de estar de novo contigo
(Lúcia Gomes direitos reservados)
(do livro POEMAS PARA PEDRO MEU AMOR)


(Foto: Pedro Gomes)

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024




                                                       O Dia da Passeata

 

                                                                                           Para Beth, minha irmã caçula,

que nos deixou antes da aventura "Diretas Já"

                                                                                                                                                                                           

    Eu quero um ovo recheado. O que você quer? Igual a você. Eu não vou pedir dois ovos recheados. Minha irmã falava isto prendendo o riso, prestes a escancarar a ideia passada na cabeça. Criança, nada entendi. Peça outra coisa. Veja quanta coisa gostosa. Olhei para cima, indecisa. Meus olhos não alcançavam o balcão da Confeitaria Colombo: os lustres maravilhosos, a decoração impecável. Parecia um palácio. Na verdade olhava para a minha irmã. Ela disse que ia pedir uma coxinha de galinha. Eu falei rápido: também quero. Assim não é possível! Ela oscilava entre a raiva e o riso. "Dá dois ovos recheados", disse ao balconista, não contendo a risada, "e dois sucos de laranja". Depois olhou para mim e soltou um "Eu te mato”. Segurei o ovo assustada. Está podre? Não, não está. Come logo e vamos andando. Andar aliás é o que eu estava fazendo há horas. Meus pés doíam muito. "Estou com os pés doendo". Está bem, ela respondeu, como quem concordava com a dor dos próprios pés. Entramos numa sapataria. Sentamos e aguardamos o rapaz que logo chegou gentil e solícito. Minha irmã escolheu um sapato. Não gostou. "É bonito", respondi. "Fica quieta", ela sussurrou no meu ouvido. Pediu outro. Foram tantos que deixei para lá. Meus olhos percorriam os sapatos contando os pares. Já estava de meias massageando os dedos. Ela experimentou a loja inteira. “Não gostei de nada”, respondeu ao rapaz. "Calça os sapatos". Calcei os mesmos sapatos que usava. Levantei da cadeira e saí de mãos dadas com ela. "Seus pés melhoraram?". Fiz que sim com a cabeça e fomos passeando pelo centro da cidade. Sempre achei o centro lindo e o melhor lugar para acompanhar qualquer um lá de casa que quisesse fazer compras. Não exatamente pelas compras. Só ganhava presente no aniversário e no Natal. Era mesmo pelo doce ou o salgado da Confeitaria Colombo.

     A noite já descia rápido e tudo foi tomando um tom cinza. As lojas fechando as portas, o céu carregado de nuvens prenunciando a chuva. Andávamos mais rápido para pegarmos o ônibus antes que a cidade virasse um charco e nossos pés começassem a coaxar nas poças.

     Ouvimos um estouro absurdo. Surgiam pessoas correndo de todos os lados. Minha irmã voava pela rua. Eu era arrastada, meus passos não conseguiam acompanhar aquela fuga, eu caía e levantava. "Vai chover agora?" Minha irmã não falava, só corria e eu já não acompanhava os passos. De repente, na rua em que estávamos, vários jovens corriam gritando "Abaixo a Ditadura! Abaixo a Ditadura!" Atrás deles homens fardados, com escudo, paus, cachorros, avançavam. Ouvi o trotar dos cavalos. Só enxergava pernas, mais nada. Muitas pernas corriam, cachorros latiam. "Porque estamos correndo? Você é professora. Mostra a sua carteira da Faculdade de Sociologia." Minha boca foi tapada e eu já não sentia nem os pés, nem mais nada. Comecei a chorar. Tudo estava fechado. Minha irmã parou na frente de um prédio comercial e bateu para o porteiro abrir. Ele continuou sentado, fingindo não ver. Ela então me levantou do  chão e me encostou na porta para que o porteiro me visse. Meu rosto estava lá: apavorado. Mais que tudo meu olhos grandes, verdes e inchados de chorar. Disfarçadamente ele abriu a porta de ferro, pintada de verde escuro. Entramos. Ela agradeceu e ele apontou o balcão. Fui colocada ali embaixo e minha irmã ficou perto, abaixada do jeito que pôde. O porteiro continuou sentado vigiando a rua como se nada lhe interessasse.

     Fiquei ali, sentada no chão, os braços envolvendo as pernas, tudo escuro. Quis falar com a minha irmã, mas ela fez sinal para eu não abrir a boca. Lá fora os gritos continuavam, barulhos de bombas estouravam e nem era São João. Espiei por uma falha no balcão. Nunca tinha visto algo igual,

     Eu estava apertada, queria ir ao banheiro, mas sabia que nada podia falar. Comecei então a contar uma história para eu mesma. Eu estou aqui, escondida da minha irmã caçula. Ela nunca vai me achar. Pode contar "Um, dois três e já". Nem no mil ela conseguiria bater na árvore e gritar "Achei!!!". Eu estou vendo cachorros grandes presos na coleira. Eles latem. Querem ser soltos e brincar no parque. Eu posso subir no galho mais alto. Me pega! Me pega! "Não vale, ela respondia, é muito alto". Vem, eu chamava. Aí a brincadeira já era de subir na árvore e balançar no galho. Pulávamos lá do alto e corríamos para ver quem chegava primeiro à fonte do Parque da Cidade. Bebíamos água, molhávamos os pés e saíamos encharcadas. Bem, isso sempre foi culpa da boca do índio da fonte que cuspia a água do jeito dele. Disparávamos para sentar nas pedras e secar os vestidos ao sol. Os cavalos estão chegando. Só vi as patas. São bonitos. Usam um ferro no lugar de sapatos, cavalgam com velocidade. Anda, sobe na garupa. Minha irmã caçula ria. Segura firme na minha cintura, tá? Ela apertava com força. Lá íamos nós por um relva imensa. O cavalo parando para comer capim. A gente deitada olhando o céu e enxergando bichos nas nuvens. As pálpebras já pesavam com sono. Minha irmã me acordou. “Vamos”. Ela agradeceu ao porteiro. Eu estava mais dormindo que acordada. Disse obrigada. A porta bateu tão logo saímos.

           Fomos caminhando devagar até o ponto de ônibus. Não passava nada. Ela demonstrava preocupação com a hora. Seguimos andando para outro ponto. Muito tempo depois pegamos um ônibus que nos tirasse dali. Vi que não ia para a nossa casa. Fiquei quieta. Descemos em outro bairro e ali sim encontramos um ônibus que nos traria de volta a casa.

     Nossa chegada foi triunfante. Mamãe aos berros não deixava que minha irmã falasse. Eu já estava acostumada. Acontecia o mesmo quando uma xícara quebrava. Minha mãe gritava com a xícara em cacos na mão querendo que um de nós confessasse a culpa. Tínhamos sempre uma xícara quebrada, uma criança assustada, culpada, e nenhuma solução. Meu pai me sacudia como se eu fosse uma boneca e queria certificar-se de eu estar viva. Meus outros irmãos olhavam em silêncio. Foram dos gritos à cara amarrada. A casa emudeceu. Eu e minha irmã mais velha jantamos. Ela foi para o quarto dela.

     Vesti minha roupa de dormir e deitei na cama que dividia com a minha irmã caçula. Ela não me deixava dormir querendo saber o que tinha ocorrido. Eu nem sono tinha. Já dormira o suficiente no ônibus. "Onde você estava?" Debaixo de um balcão. "O que é isto?" É como se esconder debaixo da cama. "Você brincou de pique sem me levar?" Não, apenas fiquei sentada. "Coisa sem graça". Eu vi uma passeata. "Uma passeata?" É. "Como é uma passeata?" Não sabia explicar. Deitamos de bruços e comecei a desenhar no travesseiro. Imagina uma boiada desembestada, os bois caindo um em cima do outro. "É isto?" Quase. Lembra daquela enchente que a tampa do bueiro estourou, formou um chafariz e a rua se transformou num rio? "Lembro” Uma passeata é como uma coisa que não dá para segurar. "Como o vento?" Mais: é um vendaval de gente. Ela me abraçou assustada. “O vendaval jogou você no balcão?” Fiz que sim. Então amanhã a gente vai lá, bate no vendaval, bate no balcão e bate na passeata.” Nos abraçamos e dormimos diante da Noite que se estenderia por anos.


(Lúcia Gomes - direitos reservados)

(Conto escrito aos 19 anos e publicado em Suplemento Literário do jornal Tribuna da Imprensa, que estava sob censura prévia. Tive vários trabalhos publicados como colaboradora e censurados. A Tribuna da Imprensa publicava os contos e poemas censurados em branco, páginas brancas. Este conto passou sem cortes.)



  


terça-feira, 31 de agosto de 2021

                                                               O TEMPO


                Quando o relógio das horas
                bate o tempo no ritmo de outrora
                volta o ir das marés e o vir através
                a marcar os passos do revés


                Relógios parados, movimentos cansados
                do alvorecer diário da praia
                solitária tal qual deserto
                onde grãos rolam incertos


                Barcos, ancoradouros, o sol
                a reluzir em ouro
                sobre as águas caladas
                bocas a cadeados trancados





Barcos em Paraty
Foto Lúcia Gomes





                       

quarta-feira, 8 de julho de 2020

MAIS UM NÃO ANIVERSÁRIO

             




                                                   MAIS UM NÃO ANIVERSÁRIO


            Rio, 31 de janeiro de 2020
            Pedro, meu filho

            Ouvi muitas pessoas dizerem que o que desaparece primeiro, quando alguém parte é o som da voz. Devo ter ouvidos apurados: tua voz é clara como uma manhã de sol na Serra da Mantiqueira. O céu é de um azul inigualável. Ainda te ouço. Ouço teus amigos nas vezes em que vinham aqui e que, agora, viraram a página. “A vida segue”.
            No entanto, eu estou na janela, debruçada sobre os nossos sonhos a procurar alguma flor, uma borboleta, um filhote de sabiá que caiu do ninho: tudo é tua presença. Nosso quintal pequeno, o jardim secreto, como vocês brincavam, continua a florir e esperar. Eu também espero florir um dia.
            A oração na missa, que sempre peço para rezar por ti, foi linda. São Pedro sempre é lembrado nas escrituras. Reflito como a missão dele foi difícil. Como ser “pescador de homens” num mundo onde as pessoas agem pior que animais? No entanto, aprendi a andar sobre as águas. Deves gostar de ver como sou leve: pluma solta na brisa da manhã.
            A bênção da chuva veio e finalmente as plantas respiram. Gosto do cheiro da terra molhada. Tua cachorrinha já não está comigo a dormir na porta vigiando o amanhã. Espero que esteja contigo. Sempre fugia da minha cama quando assobiavas para chamá-la para a tua. Frequentou o Baixo Gávea, antes daquilo virar uma loucura. Eu alertava: ela é “de menor”. Você ria.Será que um dia haverá um amanhã de crianças brincando na rua, de casas sem grades, de amigos verdadeiros. Saudade da Gávea da minha infância. Sei que a natureza sorrirá em meu lugar. É uma forma de refletir os meus lábios.
            Aprendi tanto contigo, meu Pedro. O teu jeito de ser, o verdadeiro, o guardavas para mim. Jamais tornarei público teus segredos. Apenas quero que saibas que mantive o respeito por tudo. Fica entre nós. Meu coração se enche de ternura, meu filho e meu maior amigo.
            Tua presença deixa as marcas até no que desaparece. O bolo de brigadeiro, presente em todos os seus aniversários, ninguém pode mais saborear: A Chaika fechou as portas. Ipanema vai mudando. As ilhas Cagarras continuam lá. Fotografo para você. Os tatuís sumiram e a água fede, até a do mar.
            Trinta e sete anos. Segui pela rua sob a as gotas que anunciavam o temporal. Inevitável pensar: meu filho chora? Entrei em casa, fechei a porta e o céu desabou inundando tudo. Observo cada detalhe, cada sinal. Ao escrever para ti a luz apagou. Acendi a vela.
            O lume desenhava sombras na parede. Lembrei do teu sorriso, quando com as mãos eu projetava desenhos. Olha a borboleta, mamãe. A noite encheu a parede de histórias.
            

            Feliz aniversário, meu filho.
            Eu te amo, Pedro
            Saudades, mamãe






Pedro Gomes
Foto: arquivo de família


domingo, 8 de dezembro de 2019

LÁGRIMAS DE NOSSA SENHORA

                                                  LÁGRIMAS DE NOSSA SENHORA

Talvez o que vou contar não seja verdade. Pode ser que sim, ou não. Eu a ouvi de uma avó que escutou de outra, de outra, de outra cujo nome se perdeu nas paredes da casa. Ouço, agora em mim, eu a vivo.
Nunca gostei da casa grande. O pé direito alto, as janelas enormes, os corredores compridos demais para os meus pés pequenos. Gostava da menina a me acompanhar. Ora amiga, ora dedo duro, conforme o próprio interesse. Daí veio o meu gosto por esconder-me embaixo da cama. Pequena, magrinha, impossivel de achar no meio de tantas colchas. Dali eu escapulia para o jardim, descia a escadinha no meio do mato, circundava a antiga senzala e ía ter com vó Rosa, o seu cachimbo, seu jeito de olhar para o lado, vendo em mim a travessura e, lá dentro, gostando. Eu sentava aos seus pés e esperava por Pedro. Só aí ela ía bater o cachimbo no caixote, ajeitar o tronco e chamar a gente de curumim. O que curumim tá fazendo aqui com a velha? Depois vem gente lá da casa falar que eu conto mentira e essa curuminha não dorme.Tossia, batia o pé calejado, puxava a saia rodada, estampada e colorida. 
Eu me divertia com Pedro, as pernas esticadas, a calça branca com um cordão, nem ligando. Às vezes deitava no chão de barro com os braços sob a cabeça.  A velha não tem brinquedo. Você não tem suas bonecas? Eu mostrava. Tinha trazido junto. Ela ajeitava o lenço rendado no cabelo, olhava de novo pra nós e via que não tinha jeito. Enxotar dali: pior. Ficava quieta, sentada no seu tronco, olhando o telhado da casinha. Na casa ninguém mexia com ela. Uns diziam ser benzedeira, outros bruxa, descendente de indio, escrava alforriada, mãe de leite. Vó Rosa era uma historia inventada por cada um. Percebia que tinham medo: Vai que lança uma praga e a plantação se perde. Outras horas respeito: Corre lá e pede uma erva para sarar o menino. Assim ela foi ficando ali. Pela manhã o garoto entragava o leite e um pão. Depois mandavam as sobras do almoço. Ela comia com a mão, fazendo um bolo e enfiando na boca. Ria sem dentes, pegava a bengala e lavava o rosto no latão de água.Tinha uma marca de mordida de cobra na perna e uma cicatriz grande nas costas. Mostrou uma única vez.
Certo dia eu e Pedro entramos esbaforidos, fechando a porta e gritando a cobra, a cobra, a cobra. Ela levantou-se do tronco, abriu a porta e viu a bicha fugindo pro mato. Foi atrás dela. Nossos olhos arregalados espiavam encostando a porta. Logo voltou. Tinha dado um nó na cobra e batia com a cabeça dela no chão. Morre bicho ruim que rasteja onde não deve. Soubemos então da marca da mordida, ainda menina, salva por milagre de um curandeiro que já tinha partido. Sobre a cicatriz nas costas ela nunca contou. 
Vó Rosa nos ensinava cantigas. Eu e Pedro dançávamos. Tum! Tum! Tum! Bateu na porta. Tum! Tum! Tum! Vai ver quem é. É Benedito. É Benedito de Nazaré. Pedro pegava minhas mãos e eu rodava feliz, segurando e balançando o vestido. Lá no mato tem folha, tem rosario de Nossa Senhora. Lá no mato tem folha, tem rosario de Nossa Senhora. Pedro jogava sementes para cima e ríamos tentando pegá-las com as mãos. Vó Rosa batia palmas e marcava o ritmo com o pé. Sorria um riso largo, os olhos negros, o coração em festa. Tem aroeira de Benedito. É Benedito que nos valha nessa hora. Ali, naquele casebre simples, de madeira rústica, vento entrando pelas frestas, aprendi dança de roda. 
Benedito, negrinho, viveu na fazenda de Nazaré. Amigo de vó Rosa, andava pelos matas boas léguas de terra para ter com ela. Juntos cresceram entre as duas fazendas, balançando as folhas das matas, correndo pelos barrancos, inventando historias e cantigas. Algumas escutavam no campo, em meio a colheita. Então acrescentavam aqui, subtraiam ali e davam nó em cipó. Benedito dizia ter visto Nossa Senhora num manto azulado, vestido branco, trazendo um rosario feito de umas sementes chamadas “lágrimas de Nossa Senhora”. Tomaram-no por aluado, menino mentiroso, invencionice para aparecer. Benedito não dava ouvidos. Vó Rosa acreditava nele. Numa de suas peraltices para atravessar as fazendas, esbarrou o olho esquerdo no arame farpado. Vó Rosa não sabe dizer se ficou cego ou não conseguia mais abrir o olho. Verdade: escorria sempre uma lágrima pela tristeza de cada um. Na  roça começaram a dizer que Nossa Senhora tinha fechado o olho dele para que ele a visse com o coração. Benedito cresceu cantando. Quando pensavam  não ver, o olho direito via pelos dois. Um dia Benedito desapareceu na mata. Quem por ela anda ainda escuta suas canções. Melhor fazer o sinal da cruz e rezar uma Ave Maria. Vai que Benedito aparece com Nossa Senhora do lado, o manto azul, o rosario.
Batia novamente o cachimbo. Firmava o pé no chão e matutava outra historia pra contar. A brisa da tarde entrava pelas frestas e Pedro tapava os buracos com barro. Eu sentava as bonecas em fila: plateia que me acompanhava. Olhando para um lado, para o outro, assuntando o barulho da folhas, passos de bichos, piados de pássaros: vó Rosa farejava o ar. Vai chover não. É só arrumação  das plantas e da passarinhada. Daqui a pouco sossega. Larga o barro, curumim, deixa isso pra lá. Dá cá essa boneca, curuminha. Cê fez roupa nova pra ela? Quero um lenço novo também. Fiz que não.A menina que vigia fez. Ela ria de não se aguentar. Vigia quem? Cês dois? Até Benedito com um olho só via melhor que ela. Olhei para Pedro. Pedro olhou para mim. Adivinhávamos o que o outro pensava só no olhar. Um segredo, um gesto, um riso, um  espiar de canto, tudo tinha significado. Nunca combinamos nada. Nasceu assim essa cumplicidade: um dia nossos olhos se cruzaram, o azul do ceu, o verde das árvores. Agora já feito, seguíamos felizes. Vó Rosa olhava para um, virava o olho do Benedito para o outro. Saíamos correndo.
Perto da casa grande as pessoas trabalhavam. Tinha sempre alguém para mandar. Por isso preferíamos contornar o casebre até o rio pedregoso, com pequenas quedas d'água e ficar por lá. A gente entrava no rio de roupa mesmo. A água batia nos joelhos. Vez que subia e molhava a barra do vestido, ou as calças. Nós juntávamos as quatro mãos em conchas e os peixinhos nadavam no pequeno lago improvisado. Bom sentar na areia do rio e ver a minha saia boiando. Pedro achava que parecia nuvem e enfeitava meu vestido com flores. Se a brincadeira cansava, buscávamos uma fruta qualquer. Depois voltávamos com os braços carregados para o casebre. Empurrávamos a porta de leve. Vó Rosa dormia na cama de palha coberta com uma manta muito linda de saco de colheita. Ela mesma que fez. Costurou os sacos, desfiou a barra e fez uns enfeites com os fios dando nós. Assim coberta parecia um bicho peludo. Andávamos na ponta dos pés. Os dedos nos labios. Nenhum sussuro. A respiração suspensa. Quem tá aí!? Ela pulava da cama enrolada na manta, os olhos apertados, caçando a bengala. Encostados  do outro lado, imoveis, esperávamos que  despertasse. Ah, são vocês? Onde foram? Curumim não tem o que fazer não? Mostrávamos as frutas. Ela levantava mancando, pegava uma gamela e arrumava do jeito dela. Deus lhes pague, a velha faz gosto. A gente aliviado via a bengala encostada. Se esta servia de apoio para o avançado da idade, outros fins tinha nas pernas de quem apoquentasse.
A tarde escurecia e tínhamos que voltar à casa grande. Demos um beijo ao mesmo tempo nas faces de vó Rosa. Outro beijo atirado da porta. Pedro agarrou a minha mão e saiu correndo me puxando. Enfiou a mão no bolso da calça e tirou um terço lindo feito de “lágrimas de Nossa Senhora”. Toma, disse estalando um beijo na minha testa. Seus olhos azuis brilhavam e o sorriso mais lindo do mundo refletia nos meus labios. Tirei o laço de fita azul dos cabelos e amarrei nossos dedos. Mãos agarradas, os dedos cruzados, dançando e cantando, nos embrenhamos pelas plantações de milho, de mandioca, de tudo que ali crescia mais rápido do que nós.

“Levantei de madrugada pra varrer a Conceição
Encontrei Nossa Senhora com seu raminho na mão.
Eu pedi ela o raminho. Ela me deu seu cordão.
O cordão era tão grande que do ceu rastava o chão
Ainda dava sete voltas em redor do coração.
Numa ponta tem São Pedro, na outra senhor São João.
No meio tem um letreiro da Virgem de Conceição.” 

(Lúcia Gomes - direitos reservados) 



Foto: Lúcia Gomes
Paraty